Meio ambiente de trabalho: a instituição do Programa de Habilitação e Reabilitação Física e Profissional, Prevenção e Redução de Acidentes, e as principais alterações no procedimento de fiscalização, autuação e imposição de multas administrativas
por Renato Meroni Bretanha, Advogado
A Medida Provisória nº 905, de 11 de novembro de 2019 ficou conhecida publicamente como a “MP da carteira verde e amarela”, pois foi o tema que mais chamou atenção da mídia e da população em geral, e, aparentemente era o propósito do governo, considerando que a exposição de motivos da propositura da Medida Provisória foca praticamente apenas neste aspecto.
Entretanto, diversas outras disposições legais sofreram alteração por este ato do Presidente da República, e, dentre elas, talvez as mais prejudiciais aos trabalhadores estão as inovações quanto à fiscalização dos direitos trabalhistas, e ao programa governamental de prevenção e reabilitação de acidentes de trabalho.
Em relação a estas destacaremos alguns pontos a seguir.
Conforme referido, temos dois grandes pontos: 1) programa governamental para habilitação e reabilitação profissional e prevenção e redução de acidentes de trabalho; 2) Fiscalização administrativa de descumprimento de direitos dos trabalhadores.
Iniciando pelo primeiro item, em apenas cinco artigos da Medida Provisória o governo cria um programa que concentra todas as ações em prol da reabilitação física e questões relacionadas a acidente de trabalho, e, principalmente, o aporte financeiro para tanto, com a instituição de todo um aparato a ser futuramente regulamentado.
Até a edição desta MP, havia, destacadamente, o serviço de habilitação e reabilitação profissional prestado pelo INSS, e o Fundo de Defesa de Direitos Difusos, o qual angariava boa parte dos recursos oriundos de multas e acordos em processos administrativos e judiciais em que o Ministério Público fosse parte, com possibilidade do órgão ministerial direcionar recursos inclusive para entidades sem fins lucrativos que promovessem os serviços de proteção desejados.
Com a MP 905, em seu artigo 19, é criado o “Programa de Habilitação e Reabilitação Física e Profissional, Prevenção e Redução de Acidentes de Trabalho”, com objetivo de “financiar o serviço de habilitação e reabilitação profissional prestado pelo INSS, e programas e projetos de prevenção e redução de acidente de trabalho”.
Para tanto, no artigo 20, são elencadas ações do programa, que em resumo significam o financiamento do programa junto ao INSS e o custeio de projetos elaborados pelo Ministério da Economia.
As receitas são previstas no artigo 21 da norma, e focam principalmente em multas e indenizações oriundas da atuação do Ministério Público do Trabalho em ações civis públicas e termos de ajustamento de conduta, obrigando a destiná-las na Conta Única do Tesouro Nacional, passando a compor, portanto, o orçamento da União, e, assim, ficando sujeitas à Lei de Responsabilidade Fiscal, inclusive possibilidade de contingenciamento.
Ademais, como já referido, pretende retirar do Ministério Público a autonomia para gerenciar a destinação das multas, com aplicação em projetos locais que tenham por finalidade a defesa dos direitos trabalhistas, nos seus mais diversos ramos.
Para gerenciar esse programa, fica criado, pelo artigo 22 da MP em análise, um conselho composto por 6 representantes de diversos ministérios, um da OAB, outro oriundo do Conselho Nacional das Pessoas com Deficiência e duas pessoas da sociedade civil, o que, notadamente, confere ampla maioria para a representatividade do governo, especialmente porque garante que a presidência será exercida por indicação do Ministério da Economia.
Esta medida se assemelha em muito com a Medida Provisória nº 900, de outubro de 2019, quando o governo alterou as regras de destinação dos valores arrecadados com as multas ambientais, de forma a dar poderes quase irrestritos para o Ministro do Meio Ambiente gerenciar da forma que bem entender, inclusive podendo contratar empresas que objetivem lucro, e agora cria um conselho para gerir verbas que seriam destinadas por diversas outras entidades.
Por fim, destaca-se que este programa tem por sua finalidade questões de meio ambiente de trabalho, nada referindo, e, portanto, deixando desguarnecidas, outras áreas caras à proteção dos trabalhadores, como trabalho infantil, condições análogas à escravidão, combate à discriminação, liberdade sindical, dentre outras.
Passando ao segundo item, quanto às fiscalizações, houve profundas alterações na atuação dos auditores da secretaria do trabalho (antigamente ministério do trabalho) e na atuação do Ministério Público do Trabalho.
Além da já referida limitação no poder de destinação de recursos do órgão ministerial, houve regulamentação dos Termos de Ajustamento de Conduta (TAC), impondo limite de dois anos de duração, com a possibilidade de renovação por igual período mediante fundamento por relatório técnico e com penalidades também limitadas pela redação dada por meio da MP 905.
Lembrando que o TAC é um instrumento utilizado amplamente pelo MPT como forma de as empresas se comprometerem a regularizarem as suas ações em consonância com a legislação trabalhista, inclusive com a possibilidade de imposição de multa e indenização, dispensando a necessidade de ajuizamento de ações civis públicas, em caso de cumprimento.
Ademais, verifica-se intensa modificação na atuação da fiscalização administrativa, procedida pelos Auditores Fiscais do Trabalho.
Inicialmente, torna a dupla visita como regra de fiscalização, o que significa que a primeira diligência do agente ao local fiscalizado servirá apenas como apontamento de irregularidades e concessão de prazo para saná-las, sem a possibilidade de já lavrar autos de infração imediatamente da constatação das ilegalidades.
Note-se que o Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho estima que os critérios estipulados para a imposição da dupla visita sejam válidos para cerca de 90% (noventa por cento) das empresas constituídas no Brasil, tornando-se regra o que até então era exceção.
Ainda, a MP cria a “visita técnica de instrução” a ser previamente agendada com a Secretaria da Previdência e Trabalho, para fins de instruir empresas sobre a legislação trabalhista.
Até mesmo disposições que poderiam ser aparentemente boas, como a digitalização dos procedimentos administrativos de fiscalização, abrem brecha para dificultar o trabalho dos fiscais, na medida em que o §4º do artigo 630, da CLT, com a nova redação da MP 905/2019, desobriga o empregador a apresentar determinados documentos que estariam disponíveis em uma espécie de banco de dados a ser criada ou regulamentada pelo governo.
Por fim, destaca-se a criação de Conselho Recursal para verificação em segunda instância administrativa de qualquer auto de infração, com a participação (à primeira vista) paritário, tripartite, com representantes dos trabalhadores, dos empregadores e dos Auditores Fiscais do Trabalho, mas, todos designados pelo Secretário Especial de Previdência e Trabalho, “na forma e prazos estabelecidos em regulamentos” (artigo 635 da CLT, com redação da MP 905/2019), ou seja, ainda pendente de regulamentação.
Por tudo isso, cada vez mais fica evidenciada a intenção de uma segunda fase da Reforma Trabalhista, iniciada em 2017 com a Lei nº 13.467, e com objetivo único de minar a proteção ao trabalhador, agora atacando as possibilidades de fiscalização e penalização administrativas e judiciais.
Nota oficial do SINAIT, disponível em: https://sinait.org.br/mobile/default/noticia-view?id=17280%2Fnota+publicamp+905+significa+interferencia+na+acao+fiscal